Crônica: Um Novo Destino para a Rainha

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Há finais que grudam na alma do público, tornam-se lendas, e há aqueles que, passados os anos, revelam-se injustos. O trágico e melodramático fim de Odete Roitman em Vale Tudo pertence a esta segunda categoria. Não pela falta de impacto – teve de sobra –, mas porque, de nossa privilegiada (e ainda tão atrasada) perspectiva do século XXI, percebemos que aquele remate foi um castigo excessivo a uma personagem que, antes de tudo, era uma sobrevivente.

Revisitar Odete hoje é fazer um exercício de arqueologia social. Sim, ela era a encarnação do capitalismo selvagem dos anos 80, ávida por poder e disposta a tudo. Mas reduzí-la a isso é ignorar suas camadas mais revolucionárias. Odete Roitman foi, antes de seu tempo, um ícone feminista involuntário. E ícones merecem finais à altura de seu legado, não a punição sumária de um roteiro que ainda carregava as amarras de seu próprio tempo.

Por que, então, ressignificar seu fim?

Primeiro, porque Odete expôs, a ferro e fogo, o preço que uma mulher paga pelo poder. Ela não lutava em um campo nivelado. Cada negócio fechado, cada empresa adquirida, era uma batalha travada contra o machismo estrutural. Sua dureza era uma carapaça necessária, uma resposta a um mundo que esperava dela submissão, não comando. Matá-la no auge de sua derrota é corroborar a ideia de que uma mulher ambiciosa, que ousa desafiar o patriarcado em seu próprio jogo, deve ser inevitavelmente destruída. É um final que pune a ambição feminina, e nós, no século 21, já vimos esse filme muitas vezes.

Segundo, Odete foi dona de seu corpo e de seu desejo numa época em que isso era um ato de coragem. Ela não era uma donzela à espera de um herói; ela era a protagonista de sua própria sexualidade. Defendeu-se com unhas e dentes – literalmente – da violência masculina, mostrando que a integridade física e emocional de uma mulher não é negociável. Sua morte anula essa narrativa de autodefesa e resistência, transformando-a em mera vítima. Ela era muito mais do que isso.

Terceiro, sua história é incrivelmente atual. Ela falava de assédio, de poder, de independência financeira feminina, de duplas jornadas morais e éticas com uma coragem que muitas produções atuais ainda não conseguem equalizar. Odete tinha segurança, inteligência e clareza de objetivos. Sua vida é um roteiro perfeito para discutirmos tudo o que ainda assombra e, ao mesmo tempo, impulsiona a mulher contemporânea.

Portanto, proponho um novo remate. Um que não seja um apagão, mas um novo amanhecer.

Imagine: a trama segue seu curso. A queda impiedosa, a trapaça de Rachel, o império desmoronando. A cena final se aproxima: Odete, sozinha, devastada. O público prepara o luto. E então, a reviravolta. Descobre-se que aquela mulher fragilizada não era a derrota, mas a jogada final. Um plano tão ousado quanto todos os que ela já arquitetou. Ela própria orquestra sua própria morte pública.

E o último quadro não é de um túmulo ou de uma praia deserta com um corpo. É uma varanda ensolarada sobre um mar azul, em algum lugar sem extradição. Odete, viva. Com um vestido impecável, não um robe de luto. Com um copo de vinho na mão, não lágrimas no rosto. Sozinha, sim, mas em paz. Donas de si não têm medo da solidão; elas a conquistam. Ela olha para o horizonte, e em seus olhos não há arrependimento ou amargura, há a serena e fria satisfação de quem finalmente se livrou de um peso morto: a opinião alheia, a sociedade que a condenava, os homens que tentaram dominá-la.

A Odete do século 21 não morre. Ela escapa. Ela se aposenta da guerra porque venceu a única batalha que importava: a por sua própria liberdade. Esse final não seria uma glorificação da maldade, mas uma celebração da resiliência feminina. Seria a justiça poética que uma personagem tão complexa, tão forte e tão incompreendida sempre mereceu. Afinal, se a marca de Odete foi sempre a liberdade, que seu final seja a sua maior e mais definitiva conquista.

Silene Borges

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