O Axé que Ecoa no Tocantins
A III Jornada de Capoeira do grupo Herança dos Pombais, realizada em Araguaína (TO) nos dias 1º e 2 de novembro, transcendeu a celebração esportiva para se firmar como um poderoso ato de memória, resistência e afirmação cultural. Sob o tema “As voltas que o mundo dá”, o axé da capoeira ressoou em Araguaína, que se tornou um ponto de convergência para a confraria interestadual. Homenageou um pioneiro e marcou a história da cidade com a formatura de uma nova geração, incluindo a primeira contramestre mulher de Araguaína.
O encontro, sediado no Auditório da Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), provou que a capoeira, especialmente a Capoeira Angola, é uma cultura viva, um elo inquebrável entre o passado de luta e o futuro de dignidade.
Herança dos Pombais: O Nome que Denuncia e Resiste
Para entender a profundidade do evento, é preciso conhecer a filosofia do grupo anfitrião. O nome “Herança dos Pombais” é uma escolha deliberada e profundamente política, que remete à citação do abolicionista Joaquim Nabuco, que descrevia as senzalas como “o grande pombal negro ao lado da casa de morada”.
A metáfora do “pombal” evoca as condições desumanas, insalubres e degradantes da escravidão, onde a população negra era confinada. O grupo Herança dos Pombais utiliza essa memória para denunciar que a lógica da exclusão persiste. As senzalas de outrora deram lugar às periferias e favelas de hoje, que, embora mais diversas, ainda carregam a marca da desigualdade social e racial.
A capoeira, nesse contexto, deixa de ser apenas uma arte marcial e se torna um instrumento de conscientização e resgate da dignidade. É um ato de resistência que usa a cultura ancestral para combater a herança de exclusão.
A Odisseia do Mestre Pantera Branca: A Busca pelo Ouro que Encontrou a Capoeira
O ponto alto da Jornada foi a emocionante homenagem ao Mestre Pantera Branca, cuja história de vida é digna de um épico brasileiro.
No final dos anos 70, Pantera, então um jovem capoeirista de Goiânia, decidiu se juntar à “febre do ouro” de Serra Pelada para sustentar sua filha recém-nascida. Em uma demonstração de resiliência sobre-humana, ele iniciou uma jornada de 1.200 km a pé, que durou quatro meses, com destino ao Pará.
A travessia foi marcada por provações extremas: fome, sol escaldante, chuvas e noites dormidas ao relento, sob pontes e até em um jazigo de cemitério. O Mestre Libertino, um de seus alunos e organizador do evento, narra um momento quase místico: o desejo intenso por comida que se materializou em um repolho caindo de um caminhão, um “manjar dos deuses” no meio do desespero.
Araguaína, que deveria ser apenas uma parada, tornou-se seu destino. Exausto, ele encontrou na cidade não o ouro material, mas a riqueza cultural da capoeira. Ao se apresentar na academia do professor Evandro, revelou sua linhagem nobre, sendo aluno de Mestre Sabú, discípulo de Mestre Caiçara e com raízes em Mestre Pastinha, um dos pilares da Capoeira Angola.
Pantera permaneceu em Araguaína por quase cinco anos, plantando a semente da capoeira na cidade e formando a primeira geração de mestres locais, como o próprio Mestre Libertino. A homenagem foi o reconhecimento de que ele não enriqueceu com metal, mas sim com o legado cultural que deixou.



O Gira-Mundo da Capoeira Angola: Poesia, Dança e Confraria
O tema do evento, “As voltas que o mundo dá”, sintetiza a história de Pantera e a própria essência da capoeira. O mundo deu uma volta e o trouxe a Araguaína; deu outra volta e seus alunos o homenageiam; e continua a girar com a formação de novos capoeiristas.
A Jornada foi focada na Capoeira Angola, o estilo mais antigo e tradicional, que se diferencia pela sua cadência, “malícia” e foco na expressão cultural.
| Característica | Capoeira Angola | Capoeira Regional |
| Ritmo | Lento, cadenciado, com variações de velocidade | Rápido, acrobático, focado na luta |
| Foco | Poesia, dança, “malícia”, expressão corporal, brincadeira | Luta, golpes, técnica, esporte |
| Movimento | Mais próximo ao chão, furtivo, teatral, corpo a corpo | Mais saltos, giros, movimentos aéreos |
| Instrumentos | Bateria completa (Berimbau Gunga, Médio e Viola, Atabaque, Pandeiro, Agogô, Reco-reco) | Bateria mais simplificada |
Como destacou o Mestre Libertino, na Angola, a luta é “mascarada” no meio da brincadeira. O verdadeiro valor está na poesia, na confraria de amigos e no calor humano.
Florzinha: A Primeira Contramestre e o Símbolo do Futuro
O clímax da Jornada foi a formatura de sete novos alunos, com a ascensão de Florzinha ao posto de Contramestre, em um marco histórico para Araguaína.
Florzinha se torna a primeira Contramestre mulher de Araguaína, quebrando uma barreira de gênero em um universo tradicionalmente dominado por homens. Sua conquista não é apenas pessoal, mas um poderoso símbolo de empoderamento feminino e de quebra de paradigmas.
A história de Florzinha se conecta diretamente à filosofia do Herança dos Pombais: a luta pela dignidade e igualdade. Sua formatura é a prova de que a capoeira é um espaço de transformação social que abraça a diversidade e promove a ascensão de lideranças femininas.

O Legado e o Apoio Institucional
O sucesso da III Jornada de Capoeira foi garantido pela união da comunidade e pelo apoio institucional. O evento contou com a presença de grandes nomes da capoeiragem nacional, como o Contramestre Passarinho (São Luís/MA) e o Mestre Canarinho (Goiânia/GO), além de uma vasta rede de mestres locais.
O Mestre Libertino fez um agradecimento especial ao Vereador José da Guia e ao Secretário de Esporte, Cultura e Lazer, Edson Galo, pelo apoio essencial e pelo compromisso em destinar recursos para a capoeira no orçamento de 2026. Esse apoio político e o suporte da UFNT, que cedeu o espaço, legitimam a capoeira como uma expressão cultural, histórica e educacional de Araguaína.
Onde Encontrar a Capoeira em Araguaína
Para quem se inspirou na história do Herança dos Pombais e deseja fazer parte dessa cultura viva, a capoeira em Araguaína é uma família unida, sem disputas entre grupos, pregando os valores de respeito e confraria.
| Grupo/Estilo | Local | Dia e Horário | Custo |
| Capoeira Angola | Parque Cimba | Segundas-feiras, 19:30 | Gratuito |
| Capoeira Regional | Espaço Cultural de Araguaína (em frente à Rodoviária) | Terças e Quintas-feiras, 08:30 | Gratuito |
| Iniciantes | Colégio Santa Cruz | Sábados, 13:00 | Gratuito |
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A Roda que Acolhe: Inclusão, Crianças e a Oração Final
A essência da capoeira é a inclusão, e a III Jornada de Capoeira demonstrou isso em sua plenitude. A roda se abriu para todas as idades, desde o mais experiente mestre até o mais novo iniciante. As crianças, futuro da cultura, não ficaram de fora e mostraram seu talento, garantindo que o legado da resistência e da arte continue vivo. O evento foi um convite aberto, inclusive para quem nunca teve contato com a capoeira, como o pequeno David Serbu, que teve sua primeira experiência e saiu de lá encantado, com o axé da roda pulsando em seu coração.
Ao final, a celebração da cultura e da história deu lugar a um momento de profunda espiritualidade e gratidão. Em um gesto de união e reconhecimento à força maior que guia a todos, a Jornada foi encerrada com a oração do Pai Nosso, selando o compromisso de que, não importa quantas voltas o mundo dê, a capoeira de Araguaína continuará sendo um farol de cultura, fé e comunidade.
A capoeira é uma arte que transforma vidas. Para quem esteve na III Jornada, a emoção foi palpável. Qual foi o momento mais marcante para você? E se a sua história também se cruza com a ginga e a resistência, conte-nos o que a capoeira significa em sua vida! Deixe seu axé nos comentários e celebre essa cultura viva!


















Respostas de 6
Um texto de grande sensibilidade e relevância, que valoriza a capoeira como expressão de resistência e identidade cultural. É inspirador ver a história e a ancestralidade ganhando voz e espaço, especialmente em um contexto regional tão rico como o do Tocantins.
Incrível ver nosso estado se desenvolvendo culturalmente, importantíssimo movimento. Que cresça mais e mais
Evento muito bonito e importante para Cultura de Araguaína.
Que matéria maravilhosa que conra a verdadeira história da capoeira de araguaina.
Que matéria linda e necessária! O texto “As Voltas que o Mundo Dá: A Capoeira de Araguaína que Une História, Resistência e Empoderamento Feminino” é uma bela obra jornalística que honra a cultura popular e a ancestralidade afro-brasileira.
A escrita é sensível, profunda e respeitosa — traduz com fidelidade o espírito da capoeira como movimento de resistência, educação e transformação. um texto que compreende a capoeira em sua essência — não apenas como luta, mas como corpo de memória, de poesia e de ancestralidade.
“As Voltas que o Mundo Dá” não é só um título: é o próprio movimento do tempo girando dentro da roda, conectando os antigos aos de agora. A homenagem ao Mestre Pantera Branca emociona e resgata uma parte fundamental da história de Araguaína, enquanto a conquista da Contramestre Florzinha inspira e representa o avanço da mulher na capoeira.
É bonito ver o reconhecimento de mestres que plantaram a semente e a força das mulheres que hoje florescem nesse chão, guardiãs do axé e da continuidade. A escrita honra os fundamentos da Capoeira Angola, esse saber ancestral que mistura, brincadeira, filosofia, poesia, música e resistência.
O texto carrega o compromisso e sobretudo a preocupação e o respeito pelos mais velhos, pelos que vieram antes, pelos que abriram caminho para a majestosa arte majestosa arte da capoeira no velho e isolado sertão goiano.
É chão, é canto, é roda, é história, e memoria, é capoeira, é ancestralidade e sobretudo é povo. Parabéns à equipe do Líder Tocantins por esse trabalho impecável, por fazer jornalismo com alma e por dar visibilidade à capoeira e aos mestres que fazem dela um quilombo em movimento — patrimônio vivo do Tocantins e do Brasil.
Foi um evento incrível algumas histórias e as raizes da capoeira de Araguaína com o conhecimento do mestre pantera branca e com outros demais mestres com direito a aulas com diversas movimentações de capoeira Angola